09 dezembro 2006

Fado.

por Charlie



Olhou para ela.
Viu como ela fechava os punhos enquanto punha toda a alma nos vincos que as unhas cravavam nas mãos e duas gotas do coração procuravam a luz da mundana noite por entre as frestas das janelas dos olhos.
O cante rasgado das entranhas seguia o trilho sofrido do poeta e avançava, todo o corpo em dádiva, todo em entrega, todo um rio de voz a diluir-se em espumas e abraços na foz, mar aberto a caminho do horizonte.
Agora as mãos abriam-se e cruzavam sobre o peito e o seu olhar cheio de brilhos das velas subia para lá do tecto do recinto, muito para lá das telhas e fios emaranhados, muito por cima dos céus cinza da noite de Outono. Era ela mesmo a mãe duma chuva de estrelas, sempre a crescer numa vibração contagiante, e de repente todo o universo saiu-lhe parido no instante em que o tempo parou, o corpo se rasgou, todo ele poema, todo ele voz enrolada nos acordes finais das guitarras...
Olhou sorrindo para a assistência. A respiração ofegante pelo esforço e projecção da alma, e avançou três passos no pequeno palco enquanto fazia uma vénia.
As estrelas voltaram a alinhar-se novamente nos infinitos arranjos e constelações e a sala encheu-se de aplausos. O mundo voltou a falar e as luzes atreveram-se a subir um pouco de intensidade acompanhando os murmúrios em crescendo, aqui e ali num tom mais alto. Por vezes uma risada mais sonora.
Jarros de tinto e chouriço assado enchiam agora o espaço de cheiros e bailados entre as mesas.
O poema continuava nas curvas do corpo de Marina que copiava os movimentos dos lábios a declamar frases e rimas.
De fadista de bairro transformada em empregada de mesa ocasional.
Aproximou-se do sítio onde tinha estado a observá-la embevecido, de olhar magnetizado.
Sentou-se junto a ele, mordendo o lábio inferior num misto de sensualidade e ciúme.
- A tua mulher veio?
Esperou um pouco antes de responder
- Não. Desta vez não. Tinha que fazer, disse-me. Não quis vir... Sabes? Mas isso agora não interessa...
Uma curta pausa sobreveio e ele aproximou-se-lhe.
- Tenho saudades tuas...
Olharam-se longamente, os lábios ardendo no adiado dum beijo.
Ao balcão, o gerente observava cuidadosamente. Pegou no telefone.
- ... Sim... O teu marido. Ele está aqui com ela... - disse baixinho, voltando-se para ficar fora do alcance visual do par - Pois... pelo que vi é coisa para levar umas horas... temos tempo. Vou já ter contigo conforme combinámos... outro para ti... Amo-te...

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